20/09/2008

Resenha: A Identidade - Milan Kundera

A fronteira entre o precipício e a terra firme existe?




Por Solange Pereira Pinto




Fui digladiada na madrugada. É tão difícil confessar uma violência! Eu bem sei. Foi ontem que minha cunhada me disse: “expor as feridas é para poucos, pois ao divulgar nossas fragilidades mostramos aos outros que eles também as têm, ou poderão tê-las”. É? Perguntei. “Não somos o que somos e vivemos o que procuramos?” Crua ela rebateu: “não!”. Não compreendi a sua negativa, essa possibilidade de não existência ou de existir pelo não. Afinal, ser era ainda “absoluto”, uma identidade imutável. Naquele momento me preparei para o tombo. Ensangüentada, horas depois, senti o soco que levei muito antes. Cai de quatro. Múltipla. Inocente. Perdida.

Cinco horas, o sol estava por nascer. Confusa. Reflexiva. Atormentada. Passava meus olhos em pisca-alerta ao redor. Tentando reconhecer. Procurando fixar-me em algum ponto seguro. Não havia. Estava cara a cara com um outro eu possível. Assustador. Gostaria de ter outra identidade? Seria outro alguém desconhecido até por mim mesma? Teria prazer na sordidez? Fazia-me de vítima em lugar de algoz? Mataria? Fugiria? Tentaria morrer? Onde estava meu eu, ou melhor, onde eu me colocava?

Foi no momento do pânico que me identifique com Chantal e Jean-Marc. Lembrei-me agora que não foi só diante da agonia, mas também do prazer, que me fiz multiplicarem faces. Camaleoa de mim mesma. Pela sobrevivência. Pela conveniência. Pela vontade. Assim como Chantal produzi sonhos esquisitos e memoráveis. Da mesma forma que Jean-Marc esqueci-me de ditos passados, atos juvenis. Milan não me poupava. Lançava as palavras, os tabefes, e eu consentia. Por quê?

Muitas vezes o pesadelo se transpunha para o sonho, e vice-versa. Quantas vezes o grito virava silêncio, e este me ensurdecia? Eu também fugi da minha vida para tentar viver outra. Não como Chantal. Ela, sim, botou tarjas no passado. Evitando olhares. Por outro lado, Jean, seu marido, sabia da própria condição marginal e aceitava viver outros enquadramentos. Coisa difícil para mim aos 40.

Certo momento ele disse: “a única razão de ser da amizade é fornecer ao outro um espelho em que ele possa contemplar sua imagem de antigamente, a que, sem o eterno blábláblá das lembranças entre colegas, estaria apagada há muito tempo”. De fato. As rodas de reencontros eram círculos de memórias. Como brincadeira de tiro ao alvo em que não se pode mais retornar após marcado o centro ou feito o desacerto. Todos viram e anotaram. Ele contava com certa frieza. O que de certa forma não me incomodava. Eu também desamava pessoas e amigos como ele fizera. “O olhar do amor é o olhar do isolamento”.

Eu estava numa posição desconfortável (eterna sensação) e mesmo assim não saía de cena. Queria o desfecho. Por mais cruel, duro, espantoso que fosse, não largaria a angústia daquela hora. Precisava sentir a pulsão daquele incômodo para me livrar dele.

Chantal foi implacável. Em um ato misto de doçura, auto-complacência, dignidade, lucidez ou loucura, narrou o dia em que foi ao cemitério e parou diante do túmulo do filho que morrera aos cinco anos: “Meu querido, meu querido, não pense que não te amo ou que não te amei, é precisamente porque te amei que não poderia ter me tornado aquela que sou se você ainda estivesse aqui. É impossível ter um filho e desprezar o mundo como ele é, pois foi a este mundo que o destinamos. É por causa do filho que nos prendemos ao mundo, pensamos no seu futuro, participamos de bom grado de seus ruídos, de suas agitações, levamos a sério sua estupidez incurável. Com a sua morte, você me privou de prazer de estar com você, mas ao mesmo tempo me tornou livre. Livre diante do mundo que não amo. E, se posso me permitir não amá-lo, é porque você não está mais aqui. Meus pensamentos sombrios já não podem lhe trazer nenhuma maldição. Quero lhe dizer agora, tantos anos depois que você me deixou, que compreendi sua morte como um presente e que acabei aceitando esse terrível presente [...]”.

Eu não tinha palavras depois disso. Mas, eu guardava comigo a certeza de que jamais teria a ousadia e a coragem de Chantal, em fazer tal declaração, sem me sentir perpetuamente culpada e apedrejada pelos coros invisíveis. Ou teria? Já havia aqui embaralhado completamente a minha identidade. Eu infelizmente entendia perfeitamente a confissão de Chantal. O que me aguardava depois dessa compreensão? Não sabia.

A vontade de chorar e correr dali para um bosque imaginário, perfeito, paradisíaco, se entrelaçava com minha curiosidade de continuar a provar daquela trama pérfida que meus olhos testemunhavam. Meu fôlego se alternava entre afoito e paciente. A carne ardia. Milan continuava demolindo as estreitezas da razão e da lógica. Batia com mais força. Meu peito rasgava. Certamente eu não seria a mesma após compartilhar as histórias de Chantal e Jean-Marc. Também não, antes?

Fosse o que fosse. Por amor. Por morte. Por tédio. A vida dos dois se consumando para mim.Em mim. Eu neles. Entranhados naquela madrugada de quinta-feira. “Os homens não se viram mais para olhar para mim”, ela disparou. Enrubesceu. Entre o ciúme e a compaixão ele avaliou sua mulher. Estaria o envelhecimento ardendo, queimando, a ponto de destruir quem eram antes do espelho ou da consciência que paira como raio, feito clarão num instante, quando a juventude nos parece eterna? A mutação da identidade? Talvez fosse uma pista.

Abatia a auto-qualquer-coisa (traição, engano, verdade, ilusão). Em Chantal, Jean-Marc, em mim, provavelmenteem Milan. Ou em você. “A palavra vida é a rainha das palavras. A palavra-rainha rodeada de outras grandes palavras [...] contra o futuro defendia um passado”. A totalidade permeada pela imaginação, guia dos viventes no túnel do real e das irrealidades. Tateando a existência, qual venda usar?

“Se, antes desse único encontro a sós, ele a tivesse encontrado muitas vezes tal como ela era com os outros, teria reconhecido nela o ser amado?”. Os “ses” sem respostas atravessando nossas vistas para desespero ou conforto. A necessidade de uma inundação de olhares. Sedução, aventura, erotismo, transgressões, fugas, segredos desafiando outros quereres, digamos, mais “sólidos”. Vida de ambigüidades. De identidades. Eu perscrutava.

Enquanto as páginas mudavam de lado, eu derretia quadradinhos de chocolate no céu da boca. Um após outro. Os olhos atentos. A almaem dúvida. As pálpebras lubrificando as idéias. “Cada um de nós está imerso num mar de salivas que se misturam fazendo de nós uma única comunidade de salivas, uma única humanidade úmida e unida”, dizia Leroy. Ri dissolvendo mais um tabletinho na língua.

Os andarilhos exaustos da existência entrando e saindo da obscuridade. Assim somos? O passar ilógico do tempo, dos atos e suas confrontações. Assim vivemos? O sentido da vida que não se sabe imaginária, ficcional ou real nos expondo a explicações indisponíveis, desagradáveis ou não. “Por mais desprezível que seja o mundo, precisamos dele para poder conversar”. Ainda não era o fim, mas fazia pensar sobre os elos que nos unem à humanidade. As convenções. As provocações. A liberdade de escolha. A identidade.

Tornando eu, alma, corpo, consciência, esquecimento, destino, excitação, indiferença … encontrei o narrador, no final, questionando o que havia vivido até ali. “Qual é o momento preciso em que o real se transformou em irreal, a realidade em sonho? Onde era a fronteira? Onde é a fronteira?”.

É assim que Milan Kundera, em “A Identidade” (1998, Companhia das Letras), lança o leitor ao calabouço e ao mesmo tempo lhe entrega as chaves da cela. Paradoxo. Encantamento. “Tenho medo quando pisco o olho”. E você? Quem é antes e depois de piscar?



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12.11.2006

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